Assassinato da dor



APERTE O PLAY


     A água ficava super gelada em contado com o meu rosto, esfreguei mais forte no intuito de tirar toda a maquiagem, limpar a fantasia que era obrigada a vestir todos os dias. Olhei no espelho e me senti melhor pois toda sombra, rímel e lápis desenhavam uma escuridão atraente sobre meus olhos azuis claros e bochechas rosadas, assim estava bom.
     Olhei em meu reflexo desfigurado e tentei compreender porque era tratada como a definição da perfeição para outrem. Eu dominava a obediência,  solidariedade, quietude, responsabilidade, e para melhorar era bonita. A beleza foi pura sorte, apesar de que eu a odiava. Todo resto era insignificante, quando estamos no vazio fazemos de tudo para não sermos vistos, observados. E a melhor maneira de se manter invisível é não chamar atenção.
      Amarrei meu loiro cabelo liso em um coque, daqueles que me deixam com uma dor de cabeça tremenda por estar tão apertado, mas assim eu podia ver com precisão o meu rosto. Tirei meu vestido rosa, aquele clássico mamãe vai ficar feliz, fiquei somente de calcinha e sutiã. Iria poupar um pouco de dor e vergonha para quem me encontrasse.
      Busquei por Carina Round - 'For Everything A Reason' em meu celular, a clássica música para essa ocasião especial, sempre achei que seria essa a trilha sonora para o meu fim, para a minha salvação.
      Entrei na banheira com a água escaldante, minha pele sempre ficava vermelha com rapidez devido a claridade de minha pele, eu adorava essa reação, a ação que era capaz de transformar meu corpo, mudar minha inútil carcaça. Passei a mão pelo meu braço esquerdo, desenhei com meus dedos suavemente minhas amostras de amores, minhas cicatrizes. Eram tantas, em todas as direções. Quando as fazia era um apelo para a vida, para o significado dela. Nunca odiei viver, o que eu não gostava era do vazio ensurdecedor que ela me obrigava a suportar. Não me encaixar em nada, não ser verdadeiramente boa em algo e não sentir amor ou paixão ao realizar tarefas, essa foi toda a minha vida. Quando eu me tatuava, não da forma convencional eu era capaz de sentir, sentir no corpo o que a alma e o espírito não sentiam, eles eram ocos, infelizmente. 
     Peguei no chão envolta de um paninho branco a navalha que roubara do meu pai logo de manha, antes de toda a festa, ou encenação melhor dizendo. Agora eu não iria acabar com minha vida, viver implica agir e eu apenas existia, nesse momento eu iria acabar com a dor, matar a velha e assustadora angústia sue não tinha cura, aquela que se alojava longe do físico, em um lugar intocável.
      Passei a navalha com força e precisão em cada pulso no sentido horizontal, enquanto o vermelho do meu sangue tingia a água límpida fechei os meus olhos e fui afundando.
      Chega um momento que cansamos de encenar, a imagem que passamos vai ficando borrada e se apagando, precisamos nos entregar para aquilo que queremos. E agora eu vou encontrar a verdadeira paz.

[TEXTO] Daquelas duvidas que só crescem

         fotos-lanchonete-14

         Ela entrou no estabelecimento apressada, visualizou uma mesa no fim do corredor, daqueles que ninguém escolhe pela falta de luz e porque os garçons parecem não perceber sua presença. Se encaminhou até o local e sentou de costas para a parede, de modo que podia ver toda a lanchonete que estava lotada. Ficou alguns instantes perdida entre o bater dos talheres nos pratos, ouvindo conversas sobre o cachorro da vizinha que destruiu as margaridas, no choro da uma criança que queria um doce, no balconista pedindo calma que logo alguém iria lhe atender.
- O que você deseja? - perguntou o garçom tirando a caneta do bolso da camisa e levando até a caderneta.
Ela pensou sobre a pergunta, o que ela desejava? No momento ela desejava voltar no tempo, aonde havia brilho nos sonhos, naquele passado onde ela achava que odiava viver, mas que hoje faz falta.
Onde os sonhos mais bobos de como ser atriz, conhecer gente famosa ou ir morar na lua era possível. Ela sente falta da sensação maravilhosa que sonhar lhe causava, hoje ela tem que suportar o gosto azedo que sobreviver as escolhas lhe causa. Ela achava que crescer, tomar decisões e ser adulta era bom. Mas acabou tropeçando nessa realidade nada divertida.
- Moça, qual seu pedido? - Perguntou novamente o garçom impaciente.
- Ah me desculpa, eu quero um suco de maracujá com água, por favor!
- Certo - O garçom anota o pedido rapidamente - Mais alguma coisa?
O que mais ela quer? Ela não quer mais morar no medo, fazer companhia constantemente a angustia. Quer encontrar prazer no seu dia a dia. Ela quer mudar, mas o medo de bater de cara nas consequências de uma escolha mal feita, ataca novamente. Ela quer escapar ou desistir, mas sabe que vai haver decepção para pessoas que confiaram nela, e ela não quer mais estragos.
- Moça?
- Só isso mesmo, obrigada.
O garçom arranca a notinha e deixa em baixo de um potinho de flor, a deixa sozinha com seus pensamentos estranhos.
Ela adora ir naquele lugar e tomar seu suco preferido, suco de maracujá  lembra sua casa, o conforto de uma família que ela não vê faz meses, e sente aquela saudade que lhe aperta o peito novamente. Ela acha que exagera demais, pois como os outros falam, nem vinte anos ela tem, ela pode fazer o que ela quiser. Mas é isso que lhe deixa assustada, ela não sabe o que quer, apenas suporta o que a vida lhe oferece, sendo bom ou não.
O suco chega geladíssimo daquele jeito que ela gosta, para amortecer um pouco o calor insuportável que ela detesta. Bebe todo em um gole e vai pagar a conta com suas moedinhas contadas.
E assim vai embora com as mesmas angustias e duvidas que chegou.

[TEXTO] Ainda existe vocês




Já era a décima folha que ela amassava e tentava acertar o cesto, talvez a vontade era de que as palavras fossem enterradas no lixo. Deixou o caderno cair no chão junto a velhas fotografias que ajudaram no alvoroço sentimental em que se encontrava, fechou os olhos tão forte que as pálpebras chegaram a doer, mas mesmo essa dor física era melhor que a dor no coração, cedeu ao cansaço e deitou na cama. As lagrimas brotavam como chuvas em uma tempestade, a musica do Arctic Monkeys ao fundo só tornava tudo pior, trazia lembranças de momentos que precisavam ser esquecidos, ela não era capaz de colocar todos os sentimentos, tudo que havia acontecido, tudo que estava engasgado e entalado em sua garganta, no papel elas pareciam apenas palavras mortas, e no peito ela sentia arder, sentia muito, sentia tudo que precisava desaparecer. Fazia anos e ela acreditava ter esquecido, mas de onde esse sentimento escapou? havia uma brecha por onde ele passou e veio para mostrar que ainda existia? E quando percebeu que ainda mexia com todo o seu ser, ela desmoronou. Era tão cômico pois estava e vivia o que queria, ela fugiu de você, e agora se encontrava de fronte aos velhos sentimentos.
Ela virou o rosto e viu uma foto bem na beiradinha da cama, quase caindo, quase desaparecendo. Esticou o braço e a pegou antes que se fosse, e era a foto favorita de vocês, entre tantas fotografias essa fora tão especial, a primeira tirada, onde ainda havia um constrangimento hilariante, ficou encarando a fotografia com tanta sensibilidade, o que ela mesma sentia naquele momento, e como você havia prometido ficar com ela para sempre. Ela acreditou que esqueceria pois a raiva que sentia era tão grande, e você a conhecia o suficiente para saber o quanto de orgulho cabia naquele corpinho tão pequeno, mas ela ainda pensa em você, ainda vive você, ainda existe vocês!
Desde que essa fagulha desesperadora reapareceu a estabilidade emocional está pendendo, ela sabe que não será capaz de terminar essa carta, e que nunca a enviaria. Senta na cama, a na frente o espelho mostra o vislumbre da antiga menina que vivia uma felicidade e não foi capaz de a proteger, agora a maturidade está lhe trazendo infelicidade em parcelas. Os papeis jogados no chão lhe mostram que não será fácil escrever, então pega a foto e coloca no envelope de envio, talvez apenas uma imagem seja capaz de transmitir tudo que precisa ser dito.

📚 Produtora de conteúdos literários, cinematográficos, séries, mundo geek e cultura pop! 🖊 Escrevo nas horas vagas sobre as dores da alma!

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